As malformações uterinas, ou anomalias Müllerianas congênitas, correspondem a espectro de anormalidades causadas por fusão embriológica defeituosa ou falhas na recanalização dos ductos de Müller na formação de cavidade uterina normal.
A incidência é difícil de determinar, visto que muitas portadoras são assintomáticas. Na população geral, os estudos mostram incidência variando entre 3 a 5%, semelhante à encontrada na população com infertilidade. No entanto, ao se considerar pacientes com abortamentos recorrentes, aumenta para 12 a 15%, podendo alcançar 25% nas com abortamentos tardios e partos prematuros.
O desenvolvimento embriológico dos ductos Müllerianos é processo que se completa por volta da 12ª semana de gestação e compreende o desenvolvimento e fusão dos ductos paramesonéfricos (ou Müllerianos) com reabsorção do septo mediano, dando origem a útero, trompas uterinas e terço superior de vagina. Falhas neste determinam diversas malformações.
Os defeitos congênitos uterinos mais comuns são a agenesia, os defeitos de fusão lateral e os defeitos de fusão vertical.
- Agenesia: presença de cornos rudimentares ou nenhuma estrutura uterina. A associação com agenesia de terço superior de vagina denomina-se Síndrome de Mayer-Rokitansky-Küster-Hauser.
- Defeitos de fusão lateral: são o tipo mais comum, sendo resultado de falha na formação de um ducto, na fusão destes ductos ou na reabsorção do septo entre eles. Dentre estes defeitos temos útero septado (parcial ou completo), útero arqueado, útero unicorno, útero bicorno,
- Defeitos de fusão vertical: são resultado da falha de fusão distal dos ductos Müllerianos com o seio urogenital ou defeitos na recanalização vaginal, resultando na formação de septos vaginais.
Os sinais e sintomas relacionados às anomalias Müllerianas variam de acordo com o tipo de defeito apresentado, porém frequentemente são assintomáticas e podem não ser identificadas. As principais manifestações clínicas são as relacionadas à dor, que pode ocorrer no início da vida reprodutiva em decorrência de alguma obstrução ou ser associada à endometriose. As anormalidades uterinas não dificultam a concepção e a implantação. Entretanto, se as anomalias uterinas não forem diagnosticadas nos anos iniciais da vida reprodutiva, as manifestações clínicas poderão ser observadas e diagnosticadas após complicações obstétricas como: abortos de repetição, partos prematuros, restrição de crescimento fetal, apresentações anômalas, distocias no parto e pré-eclâmpsia.
As anomalias congênitas do útero são diagnosticadas frequentemente durante as avaliações ginecológicas de rotina e como parte da investigação de infertilidade ou complicações obstétricas. Dessa forma o exame ginecológico é o primeiro passo no diagnóstico. Algumas malformações cervicais e vaginais como aplasia, duplicidade cervical e septo longitudinal podem ser percebidas pela simples inspeção. Já as dilatações secundárias à obstrução do fluxo menstrual podem ser verificadas com a palpação.
Como consequência das primeiras suspeições referidas acima, a avaliação diagnóstica passa quase sempre pela ultrassonografia transvaginal ou pélvica para investigação de dor ou massa pélvica e pela histerossalpingografia em decorrência de infertilidade. Esses dois exames são considerados a primeira linha de investigação, podendo ser indicada uma avaliação adicional com ultrassonografia tridimensional e ressonância magnética. Esses dois últimos são considerados os melhores exames não invasivos para o diagnóstico das anomalias uterinas.
Anomalias no trato urinário estão presentes em 20 a 30% das mulheres com malformações Müllerianas, especialmente aquelas com útero unicorno e bicorno. Consequentemente, uma vez tendo sido estabelecido o diagnóstico, a investigação de malformações urinárias deve ser recomendada.
O tratamento para as anomalias uterinas congênitas é exclusivamente cirúrgico, visando restaurar a arquitetura uterina normal e preservar a fertilidade. Ele está recomendado para pacientes com perdas gestacionais recorrentes, devendo ser evitado em pacientes assintomáticas ou com infertilidade primária. É importante ressaltar que o tratamento cirúrgico nem sempre é eficaz, visto que alterações vasculares ou funcionais do endométrio, miométrio e colo uterino podem também estar presentes.
Dentre as opções cirúrgicas para anomalias uterinas, a mais efetiva e segura até o momento consiste na ressecção histeroscópica do septo uterino.
Uma técnica de unificação dos cornos uterinos em útero bicorno foi descrita e apresentou resultados gestacionais posteriores satisfatórios. Considerando a morbidade cirúrgica imposta, entretanto, o procedimento deve ser reservado para pacientes com útero bicorno e abortamento recorrente sem outra causa justificável. Já a correção cirúrgica do útero didelfo não parece melhorar os resultados gestacionais e seu benefício é questionável. As pacientes com útero unicorno ou arqueado normalmente não são candidatas ao tratamento cirúrgico.
O acompanhamento pré-natal de uma paciente com malformação mulleriana deve ser idealmente realizado em unidade de alto risco em função das complicações já citadas, tais como aumento do risco de abortos de repetição, partos prematuros, restrição de crescimento fetal, apresentações anômalas, distocias no parto e pré-eclâmpsia. A conduta frente a essas complicações não difere daquela adotada em pacientes sem malformações mullerianas e a cesariana só deve ser indicada em caso de apresentações anômalas, seguindo indicações obstétricas nas outras situações.
Há relatos na literatura do benefício do uso da cerclagem cervical e/ou abdominal em pacientes com defeitos Müllerianos e perdas gestacionais recorrentes. No entanto, os critérios utilizados para realização deste procedimento devem ser os mesmos da incompetência istmo-cervical clássica, evitando-se a cerclagem rotineira.